2.7.08

De como SUSpirar e seguir em frente...





A história que vou compartilhar com vocês hoje vai para a listinha das inesquecíveis. Pensei em contá-la porque ela faz parte da trajetória dos meus recém completados nove anos como psicóloga do SUS, num município da região metropolitana de Porto Alegre, onde o que mais se ouve dos profissionais da saúde é: "essas coisas só acontecem aqui nesta cidade". Mas vamos à história.
Este ano foi de muitas mudanças para melhor no nosso serviço de saúde mental. Uma das ações a que estávamos nos propondo era de realizar eventos que pudessem nos aproximar da comunidade. Pois bem. Dentro da nossa proposta estava a comemoração do Dia Mundial de Combate às Drogas. Assim, meio em cima da hora, e - admito - sem o planejamento necessário - resolvemos tocar a idéia. Felizmente pudemos contar com a assessoria de comunicação do município. As dificuldades, como sempre, começaram com a pouca verba para divulgação. Aprendemos que para confeccionar uma faixa, por exemplo, é necessário planejar com pelo menos um mês de antecedência, para que possa ser orçada e passe por uma licitação. Nada de faixas, portanto... Resumindo, verba curta e parcos recursos. Mas, tudo bem! A gente está acostumada com isso.
Faltando exatamente uma semana para o nosso evento, o "I Encontro Comunitário de Saúde Mental: Drogas e Tratamento", com convites, folders e cartazes já sendo distribuídos, uma bomba: nosso único psiquiatra, que iria ser um dos palestrantes, informa que tinha sido aprovado num concurso e estava se exonerando... Claro, ele faria o possível para estar presente como palestrante do nosso evento, mas não podia nos dar certeza... Ok, ok, somos compreensivos! Afinal, estava sendo uma mudança para melhor na carreira dele! Como já era tarde demais para encontrar outro palestrante e o nome dele já estava sendo divulgado, mantivemos a esperança de que ele fizesse um esforcinho e viesse para palestrar.
Nessas horas não dá tempo de pensar muito. Tínhamos que tocar em frente, ajudar na distribuição de material, fazer todas essas coisas que a gente não tinha a menor idéia do quanto dão trabalho. Tudo isso, mantendo a agenda de atendimentos, urgências, etc. Aí, uma surpresa: o diretor do ambulatório nos informa que teríamos que fazer quase 50 entrevistas admissionais em uma semana. É que os concursados precisavam assumir até 30 de junho por causa do período eleitoral. Podem imaginar o que é incluir quase 50 atendimentos extras numa agenda lotada, sem o menor planejamento ou aviso prévio e ainda tendo que fazer os preparativos de um evento? Claro, tivemos que desmarcar a maioria dos atendimentos e felizmente pudemos contar com o reforço do psicólogo de outra secretaria.Ok, ok, acontece! A gente entende... Afinal, novas contratações, novos colegas chegando, tem um lado bom, né? Toca em frente!
Enfim, chegamos na sexta feira, dia do evento, que estava programada para iniciar às 14:00 h. Às 12:30 o psiquiatra ainda não havia nos ligado para dizer se iria comparecer ou não. Ligo duas vezes para o celular dele. Não atende. Quase 13 horas, ele retorna a ligação. Realmente ele não poderia ir, pois tinha que levar a filhinha ao médico...Ok, ok... Eu já estava contando com essa possibilidade. Durante o final de semana anterior eu havia trabalhado em casa, (sem horas extras, claro) montando um vídeo para apresentar, caso o psiquiatra não fosse. No início não deu certo, tive que refazê-lo algumas vezes, trabalhei à noite, em casa, durante a semana, foi um trabalhão. Mas no final deu certo e até que ficou legalzinho... E depois, como ex publicitária, eu adoro fazer essas coisinhas. Vamos tocar em frente!
13 horas em ponto, bato meu ponto. Quem disse que funcionário público não cumpre horário? Minha colega e eu corremos para o local do evento. Hora de montar o datashow. Bacana essa tecnologia, né? Eu adoro! Pois é... Mas acontece que o diabo do datashow e meu notebook não foram um com a cara do outro.
13:45 horas. Nada de datashow funcionar. Nem eu nem ninguém sabia o que fazer. Chega uma ajuda extra do presidente do Conselho Municipal de Saúde, que por falha nossa, nem havia sido convidado. Estava lá por acaso. Saia justa! Passado o constrangimento de pedir ajuda a ele nessa situação, seguimos tentando. Não adiantou.
14:15. O secretário da saúde ainda não havia chegado, o presidente da câmara também não, mas chega o vice prefeito, muito simpático, para compor a mesa.
14:30 h. A assessora de comunicação estava preocupada com o atraso e com o inconveniente causado ao vice prefeito, que tinha outros compromissos. Eu, de tão atucanada com o datashow, nem havia olhado direito para a platéia. Então, eu olho e vejo: uma (01) pessoa! Isso mesmo: uma única pessoa havia chegado para assistir ao nosso I Encontro Comunitário da Saúde Mental. Justamente uma das pessoas, que já tendo sido usuária do serviço de saúde mental, havia feito a divulgação na rádio comunitária.
Um pouco antes das 15 horas, chega o secretário da saúde. Tenta nos ajudar com o datashow e também não consegue. Olho novamente para a platéia: umas 6 pessoas, ou numa linguagem popular, meia dúzia de gatos pingados! Proponho fazer uma rodinha e apresentar o vídeo e o power point no notebook mesmo. O secretário da saúde não deixa. Pede para trazerem outro computador. Dali a pouco chega um computador, instala-se o datashow, coloco o pen-drive. Nada!! Não abre o power point e nem o vídeo!! Proponho de novo a rodinha. Aí alguém se dá conta de que aquele computador não tinha o programa power point instalado. Traz outro!! Veio o outro e finalmente, ali pelas 15: 30 começamos finalmente o nosso evento.
Depois do bla-bla-bla de abertura, do cerimonial - feito apenas pelo secretário da saúde, pois àquela altura o vice prefeito já tinha ido embora - eu inicio minha apresentação. Completamente borocochô, diga-se de passagem. Eu havia dado essa mesma palestra na quarta feira, na clínica onde trabalho em Porto Alegre e tinha lotado nossos poucos 12 lugares, com uma platéia calorosa e interessada. Quanta diferença... Aos poucos fui esquentando as turbinas, começou a chegar mais público e ficou mais animado.
Então, quando eu termino de falar e vamos abrir para perguntas, um sujeito se aproxima de mim para falar de algo pessoal, em voz alta e totalmente fora de contexto. Percebo a delicadeza da situação, puxo a pessoa para fora da sala e converso com ele enquanto minha colega toma a palavra e passa a falar do nosso trabalho para o público. Uffa! Resolvido o imprevisto, volto, e seguimos o baile.
Continuamos respondendo perguntas para um público relativamente pequeno, algumas professoras, alguns políticos e alguns funcionários da prefeitura. O assunto álcool e drogas traz sempre muitas dúvidas e considerações e a platéia acabou sendo bem participativa. Nosso colega médico clínico geral fez sua apresentação já com menos pessoas, devido ao adiantado da hora e enquanto eu o vejo falar percebo o quanto foi importante termos levado a idéia adiante.
Quem trabalha com saúde mental no SUS, sabe como é difícil compor uma equipe e ainda mais difícil contar com um médico clínico geral em co-terapia num grupo de dependentes químicos, que se dispõe a dar uma palestra fora do seu horário de trabalho depois de gastar preciosas horas do seu tempo em casa, preparando uma boa apresentação.
Antes de encerrar, um dos políticos presentes elogiou as apresentações e contou que uma das escolas municipais tinha lhe pedido que doasse dois garrafões de vinho para fazer o quentão de uma festa junina. O que eu havia falado sobre bebidas alcoólicas nas escolas tinha feito ele se dar conta do quanto isso era inadequado e que escolas não deveriam incentivar consumo de álcool.
Depois disso voltei para casa com a sensação de que, sim, vale a pena. O que parece uma coisa mínima, como alguém se dar conta de que quentão com álcool não é bebida apropriada para uma escola, é sim, um passo dado em direção à prevenção do uso abusivo de drogas. Que algumas poucas mães, pais, avós e professoras que ali estavam levaram para casa informações e reflexões novas.
Sim, vale a pena. Mesmo quando nos dizem que seria melhor usar nossa qualificação em outro lugar, num emprego que oferecesse melhores condições de trabalho. Se todos nós, bons profissionais do SUS pensássemos assim, jamais poderíamos qualificar nosso ambulatório, CAPS ou outro serviço de saúde. É provável que eu seja uma idealista e que a vivência de uma juventude nos anos 70, próxima de movimentos sociais, tenha me feito a cabeça de modo que eu goste tanto do que faço no SUS e seja resiliente.
Saí de lá conversando com meu colega médico sobre a cultura dessa cidade em que trabalhamos, que nos parece tão oprimida. A tarefa de ser psicóloga do SUS e escutar o sintoma de uma população quase sem voz, não é fácil e muitas vezes me faz suspirar, cansada. Mas, há sempre um instante de ver, um tempo de compreender e um momento de concluir. E se hoje encaramos um público de uma pessoa só como uma pequena adversidade, um dia a gente há de ver a cidade um pouco melhor. Enquanto isso, a gente SUSpira e segue em frente!

4 comentários:

Anônimo disse...

Silvana
Acredito que esse é o SUS que dá certo e que não é interessante que apareça.

Mas justamente aparece nas pequenas coisas que se tornam grandes
acontecimentos e mudam a vida de alguém.
Temos que nos parabenizar muitas vezes pelas nossas iniciativas, por mais
pequeninas que pareçam, por estar ao lado de uma pessoa quando ela precise
de nossa ajuda, por batalhar no cotidiano.

Minha tarde de ontem iniciou a caminho , com uma colega, três usuários e a
mãe de um deles, de uma vaga numa empresa. Pegamos um ônibus pinga pinga (
o carro que nos daria uma carona estragou) .Depois de uma hora e pouco por
entre várias localidades, aportamos em Canoas para a tal seleção.
O processo transcorreu bem, os três foram pré selecionados , e amanhã tem o
teste final.
Ouvir da mãe de um deles que ela estava muito feliz pois "ela não queria
morrer sem ver o filho trabalhando ", - e não apenas ganhando um benefício
ou bolsa assistencial- nos faz realmente pensar na nossa diferença.
Apesar de toda a sua dificuldade motora, o nosso usuário estava lá
concorrendo aquela vaga. Seus olhos brilhavam , ele quase não cabendo dentro
de si de tanta alegria.
Na volta, espremidos como sardinhas , retornamos a Novo Hamburgo com os
nossos "pupilos". Três candidatos e suas promissoras conquistas. Sim,
conquistas de todo um processo, de uma mudança em suas vidas...
A mesma BR 116 que faz o caminho para as internações hospitalares
psiquiátricas também aponta para outros horizontes : de trabalho, de vida,
de encontros...
E é essa mesma BR116 que passa entre os nossos municípios ...
Voltei pra casa SUSpirando de alegria...


Um grande abraço
andrea

PS- tem um texto muito legal de uma revista de TO que fala de um dia na vida
de um trabalhador de saúde mental ... se achar eu te mando. Me lembrou os
teus escritos.

Andrea C Mileski
Terapeuta Ocupacional

Anônimo disse...

Silvana!!!!
Enquanto lia o relato, fui lembrando de momentos vividos em situação
mto semelhantes...
Atire a primeira pedra quem não passou algo parecido uma vez!!!!!
hehehehe
Em saúde pública, tentando fazer saúde mental..... mtos contratempos.
Estou agora, trabalhando num CRAS e vejo q passamos por situações mto
semelhantes as vividas em saúde pública.
Saudades de todos!!!
Bjão
Dirce

Anônimo disse...

Silvana,
Acompanhei o relato de tuas angústias neste dia. Que bom que no final não desistisse desta luta que é fazer parte da construção do SUS e de melhor qualidade de vida dos usuários.
Parabéns por tuas iniciativas e perseverança! Continues SUSpirando, mas espero que com menos dificuldades.

Bjs,


Suzana C. Boklis

Coordenação de Saúde Mental
Programa de Combate ao Tabagismo
2ª CRS

Anônimo disse...

Silvana
amei o que escrevestes! quando sai teu livro de crônicas? quero estar na sessão de autógrafos !
teus desabafos e reflexões nos permitem uma identificação positiva! dei gargalhadas no meio do relato , que de trágico ficou cômico e de cômico ficou sério!
e mais uma vez DO LIMÃO SE FEZ LIMONADA!!
posso sugerir um título? SUSpiros de limão com LIMONADA
receitas de Silvana
hehehehhe
por isso que a gente não enlouquece! senso de humor, criatividade , jogo de cintura ,
etc.................. heheheheh
abraços a todos!


Marlise Gonçalves Ribeiro